Contato Visual e Autismo: O Que a Ciência Revela Sobre Neurobiologia, Intervenções e Mitos Clínicos

Por que falar de contato visual no autismo?

O contato visual ocupa um papel central nas interações humanas. Desde os primeiros meses de vida, o olhar é um dos principais mediadores da atenção conjunta, da regulação social e do aprendizado. É por meio do contato visual que crianças tipicamente desenvolvidas compartilham experiências, captam intenções e aprendem a responder a sinais sociais sutis desde entender onde outra pessoa está focando até coordenar turnos em conversas.

No contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA), o tema ganha especial relevância porque a dificuldade em estabelecer ou manter contato visual é considerada um dos marcadores diagnósticos mais consistentes, presente desde as primeiras descrições de Kanner e incorporado aos critérios diagnósticos atuais (DSM-5). Essa característica, observada tanto em avaliações clínicas quanto em pesquisas com eye-tracking e neuroimagem, costuma ser interpretada como um indicativo de desafios na comunicação e na atenção social.

Porém, o papel do contato visual vai além do diagnóstico – e é justamente aí que surge a controvérsia. Por um lado, muitos programas de intervenção, como os baseados em Análise do Comportamento Aplicada (ABA), utilizam estratégias de prompting e modelagem para ensinar ou ampliar respostas de olhar, com evidências de que isso pode acelerar a aquisição de habilidades imitativas e comunicativas em crianças autistas. Por outro, estudos recentes sugerem que olhar diretamente para o rosto pode não ser essencial para a atenção conjunta ou para o engajamento social em ambientes naturais, sendo que pistas como gestos e ações com as mãos podem ter um peso maior para a coordenação social – inclusive em crianças típicas.

Com isso, cresce a necessidade de diferenciar o contato visual como marcador diagnóstico (útil para triagem e avaliação) e como mecanismo funcional de inter- ação social (relevante em contextos de aprendizado e engajamento). Pesquisas atuais, combinando relatos de pessoas autistas, achados neurobiológicos e análises comportamentais, vêm ampliando essa compreensão e ajudando a redefinir quando e como o olhar deve ser trabalhado em contextos clínicos.

 

O que a ciência já sabe sobre o contato visual em pessoas com autismo

O contato visual é reconhecido como uma habilidade central para a regulação social e a troca de informações. No entanto, para pessoas com autismo, essa habilidade apresenta padrões atípicos que diferenciam sua experiência social em diversos contextos.

Pesquisas mostram que, enquanto crianças e adultos neurotípicos direcionam o olhar de forma reflexiva para os olhos e rostos de outras pessoas, indivíduos com TEA tendem a reduzir a frequência e a duração dessas fixações. Essa diferença é observada desde a infância e é considerada um marcador diagnóstico, presente em instrumentos como o Autism DiagnosticObservation Schedule (ADOS) e nos critérios do DSM-5.

Estudos de eye-tracking corroboram essa evidência: pessoas com TEA passam menos tempo fixando o olhar em estímulos sociais relevantes, como olhos e expressões faciais, e apresentam dificuldade em priorizar informações sociais na cena. Essas alterações influenciam a atenção compartilhada, a interpretação de intenções e o engajamento social, contribuindo para os desafios comunicativos característicos do espectro.


Por que isso acontece? Modelos teóricos explicativos

Apesar de as diferenças serem bem documentadas, suas causas permanecem debatidas. Quatro modelos principais ajudam a explicar por que pessoas autistas podem evitar ou reduzir o contato visual:

• Modelo de hiperexcitação (hiperarousal): o contato visual ativa intensamente sistemas de arousal e redes emocionais, como a amígdala, tornando a experiência desconfortável ou aversiva.

• Modelo de hipoexcitação (hipoarousal): o cérebro não prioriza informações sociais; rostos e olhos não recebem o mesmo “peso” motivacional, tornando o olhar socialmente menos relevante.

• Teoria da Mente e “mind-blindness”: falhas em módulos inatos de percepção de direção do olhar e atenção compartilhada reduzem a capacidade de usar os olhos para inferir intenções e estados mentais.

• Modelo do processador rápido subcortical: déficits em vias rápidas de detecção de faces e olhos prejudicam o desenvolvimento de redes sociais do cérebro, como o sulco temporal superior e regiões pré-frontais.

Cada modelo traz implicações distintas para intervenção: enquanto alguns apontam para desconforto fisiológico real, outros sugerem diferenças de prioridade motivacional ou de processamento neural. Estudos recentes com fNIRS (espectroscopia funcional no infravermelho próximo) e fMRI ajudam a revelar o que acontece no cérebro durante interações face a face. Em situações de contato visual direto, adultos com TEA apresentam hipoatividade em regiões do lobo parietal dorsal e do sulco temporal superior, áreas relacionadas à integração de sinais sociais, e ativação aumentada em regiões ventrais, que podem refletir processamento compensatório.

Além disso, observa-se redução da coerência neural entre cérebros durante interações reais, sugerindo menor acoplamento social ou “sintonia” em interações ao vivo. Esses padrões de ativação correlacionam-se com medidas clínicas, como o ADOS-2 e o SRS-2: quanto mais severos os desafios sociais, menor a resposta neural a interações de olhar direto.

Esses achados destacam que as diferenças no contato visual vão além do comportamento visível: refletem alterações nas redes neurais de percepção social e podem demandar abordagens clínicas individualizadas, que considerem tanto a fisiologia quanto a experiência subjetiva do indivíduo.

O que as pessoas autistas relatam sobre a experiência do contato visual

Embora a ciência documente diferenças claras no comportamento ocular de pessoas com TEA, é fundamental ouvir as próprias pessoas autistas para entender o impacto e o significado dessas diferenças. Estudos qualitativos com adultos autistas revelam que, para muitos, o contato visual pode ser fisicamente e emocionalmente desconfortável, associado a sensações de sobrecarga ou excitação elevadas.

Os relatos destacam três pontos centrais:

• Desconforto e esforço consciente: muitos participantes descrevem o olhar direto como algo que exige atenção ativa e gera ansiedade, especialmente em interações com pessoas pouco conhecidas.

• Estratégias compensatórias: para atender expectativas sociais, algumas pessoas usam técnicas como olhar para o nariz ou a testa do interlocutor, ou dosar o tempo de contato visual, alternando entre olhar e desviar o olhar para conseguir manter a conversa.

• Influência do contexto social: o contato visual tende a ser mais tolerável ou natural com pessoas próximas e em situações controladas, e mais desafiador em interações formais ou de alta demanda social.

Essas experiências sugerem que, para muitas pessoas autistas, forçar o contato visual pode gerar mais barreiras do que benefícios, reforçando a importância de considerar preferências individuais e promover alternativas de engajamento como focar em gestos, voz e expressões corporais – em vez de insistir rigidamente na “normalização” do olhar.

 

Mitos e realidades: o contato visual realmente impulsiona a interação social?

Apesar de sua importância diagnóstica, estudos recentes questionam a ideia de que o olhar direto seja o motor central da atenção conjunta e da interação social. Pesquisas com crianças em contextos naturais mostram que olhar para o rosto é um comportamento raro, mesmo entre crianças neurotípicas. Um estudo com rastreamento ocular em primeira pessoa, durante interações livres com os pais, revelou que tanto crianças autistas quanto típicas quase não olhavam para o rosto dos adultos (cerca de 1% do tempo). Em vez disso, a atenção conjunta era guiada principalmente por gestos, ações com as mãos e manipulação de objetos, que se mostraram pistas muito mais confiáveis para identificar o foco de interesse do parceiro.

Esses achados têm implicações diretas para a prática clínica: O contato visual continua sendo um marcador útil para triagem e diagnóstico, já que sua ausência ou atipicidade distingue de forma confiável crianças autistas em avali-

ações estruturadas. Porém, confundir marcador diagnóstico com mecanismo de desenvolvimento social pode levar a intervenções desnecessariamente forçadas ou pouco funcionais. Promover engajamento social eficaz pode, em muitos casos, significar ensinar habilidades alternativas de atenção compartilhada, como seguir gestos, ações com objetos e sinais vocais, em vez de focar exclusivamente em manter o olhar.

Essas evidências reforçam a necessidade de uma abordagem equilibrada: valorizar o olhar como ferramenta, mas não como fim em si mesmo, garantindo que os objetivos clínicos realmente favoreçam o aprendizado e a qualidade de vida das pessoas autistas.

 

O que funciona em intervenção?

O contato visual e as habilidades imitativas são frequentemente alvos de programas de intervenção comportamental para crianças com TEA. Estratégias como modelagem (demonstração do comportamento desejado) e prompting (ajuda gradual, geralmente de menor para maior intensidade) têm mostrado eficácia para aumentar respostas de olhar e comportamentos imitativos em contextos clínicos.

Um estudo conduzido com crianças autistas na Síria demonstrou que a combinação dessas estratégias resultou em melhora consistente tanto no contato visual quanto na imitação, em sessões clínicas e durante o acompanhamento em casa.

A intervenção utilizou prompting do tipo “menos para mais” (least-to-most), que permite à criança tentar responder de forma independente antes de receber ajuda, e mostrou-se aplicável mesmo em um contexto de recursos limitados e desafios sociais significativos.

Apesar dos resultados positivos, o estudo também ressalta limitações importantes: a eficácia das estratégias varia entre crianças; Prompts podem ser difíceis de reduzir (fading) e, se mal aplicados, podem gerar aversividade ou dependência; O contato visual não deve ser imposto de forma rígida, especialmente se gerar desconforto fisiológico ou emocional. Esses achados reforçam a necessidade de personalizar o ensino, considerando fatores culturais (como contextos em que o olhar direto pode ter significados distintos) e individuais (nível desensibilidade sensorial, motivação social e perfil de comunicação).

 

Implicações para profissionais: como alinhar prática clínica e evidências

Diante dos dados científicos e dos relatos de pessoas autistas, a atuação dos profissionais deve seguir princípios de ética e funcionalidade. Algumas diretrizes fundamentais incluem quando priorizar o ensino do contato visual, quando o olhar é funcional para facilitar a comunicação e o aprendizado (por exemplo, ajudar a identificar sinais não verbais do professor ou parceiro de interação) e quando a criança demonstra tolerância e conforto com a habilidade, e o ensino não gera sofrimento.

O profissional deve focar em outras formas de engajamento social quando o contato visual é uma fonte clara de estresse, sobrecarga sensorial ou ansiedade e se outras estratégias (seguir gestos, expressões vocais, uso de CAA – Comunicação Aumentativa e Alternativa) são mais eficazes para promover a interação. Além disso, deve ser considerar o conforto e a autonomia: evitar práticas coercitivas ou invasivas (como forçar fisicamente o rosto da criança para o olhar) e priorizar metas que aumentem a funcionalidade da comunicação e a qualidade das interações sociais, e não apenas a conformidade a padrões neurotípicos.

Com essa abordagem, o contato visual pode ser trabalhado como uma ferramenta de comunicação – e não como um fim em si mesmo, garantindo que o foco da intervenção esteja no desenvolvimento social e na qualidade de vida da criança.

Referências

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Autor do Post:
Luiz Kennedy de Almeida Silva. – Psicólogo (CRP:13/9162), Pedagogo especializado em Psicopedagogia, Coordenador ABA.

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